Episódios frequentes de regurgitação em bebês através da boca e, às vezes, do nariz são motivo de muita preocupação de familiares e cuidadores. Trata-se do refluxo gastroesofágico (RGE), responsável por provocar a conhecida “golfada”. Embora cause apreensão, esse evento é fisiológico, considerado normal em crianças desde o nascimento. É importante, porém, diferenciar essa situação da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), patologia que pode desencadear complicações mais graves.
O gastroenterologista pediátrico Mario Cesar Vieira, do Hospital Pequeno Príncipe, explica o que é e como diagnosticar e tratar o refluxo gastroesofágico simples e a doença do refluxo.
O que é o refluxo gastroesofágico (RGE)?
Refluxo gastroesofágico (RGE) é um termo que se refere ao retorno do conteúdo do estômago para o esôfago (o tubo que conecta a boca até o estômago). Na junção entre o esôfago e o estômago, há um anel muscular que compõe o esfíncter inferior do esôfago, funcionando como uma pequena válvula. Quando o alimento chega nessa região, a “válvula” se abre para permitir que ele chegue ao estômago e depois se fecha, impedindo o retorno para o esôfago. Na maioria das vezes, esse esfíncter não se fecha completamente, permitindo que o conteúdo do estômago volte para o esôfago ocasionalmente, sem causar problemas. O refluxo é um evento fisiológico (normal) que ocorre em crianças desde o nascimento e em adultos saudáveis.
Quais são as manifestações do refluxo gastroesofágico?
A maioria dos bebês tem episódios frequentes de regurgitação, as chamadas “golfadas” através da boca e, às vezes, do nariz. O refluxo fisiológico ou simples não causa transtorno ao bebê, tem baixo risco de complicações e, na maioria das vezes, não requer tratamento.
Por outro lado, alguns bebês com diagnóstico de doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) podem apresentar irritabilidade, baixo ganho de peso, dificuldade na alimentação, sintomas respiratórios ou sangramento digestivo, entre outros. Essas manifestações podem ser causadas por outras enfermidades, e nesses casos o médico analisa as investigações e tratamentos mais apropriados para cada paciente. As manifestações clínicas do RGE variam individualmente e com a idade. Muitos sintomas específicos em crianças maiores e em adultos são raramente ou nunca observados em bebês.
A introdução de outros alimentos, após o período de amamentação, interfere no refluxo?
Em geral, com a introdução da alimentação sólida, os episódios de regurgitação do bebê diminuem gradualmente. A alimentação saudável e rica em fibras, evitando-se alimentos processados e gordura saturada, contribui para o funcionamento mais adequado do trato gastrointestinal, incluindo os processos digestivos que ocorrem no estômago.
Quais são as complicações do refluxo gastroesofágico?
A maioria dos bebês com refluxo gastroesofágico simples melhora com a idade sem apresentar qualquer complicação. Se o ácido leva à inflamação do esôfago, isso é chamado de esofagite, e pode haver a sensação de queimação.
É difícil diagnosticar esofagite somente por achados clínicos em bebês, pois eles são incapazes de relatar os clássicos sintomas encontrados em crianças maiores e adultos. A esofagite pode reduzir o apetite e, nas formas mais graves, pode levar ao sangramento da porção inflamada do esôfago. Outra manifestação possível da doença do refluxo gastroesofágico é o baixo desenvolvimento do peso e estatura por nutrição deficiente.
Alguns bebês com doença do refluxo gastroesofágico podem apresentar problemas respiratórios (pulmão, garganta, ouvido) devido ao refluxo de alimento e suco gástrico até as narinas e os pulmões. Crise de apneia (parada de respiração) por obstrução após as mamadas também pode ocorrer como consequência da doença.
Como é feito o diagnóstico da doença do refluxo gastroesofágico?
Os pacientes com refluxo simples, sem sinais de complicação, devem ser manejados com medidas conservadoras antes de qualquer investigação. O diagnóstico é baseado primariamente nos sintomas apresentados. Em alguns casos, quando há suspeita de doença do refluxo gastroesofágico, o médico pode solicitar alguns testes, incluindo o exame radiológico contrastado, o “raio X”, a endoscopia digestiva alta, entre outros.
O “raio X” do esôfago-estômago e duodeno pode demonstrar estreitamentos do esôfago e deformidades do trato digestivo superior. Esse exame serve para excluir problemas anatômicos, e não para identificar o diagnóstico de RGE, uma vez que a presença de refluxo não significa que ele seja patológico.
A endoscopia digestiva é um método que permite a visualização direta da mucosa, possibilitando a coleta de biópsias para classificar o grau de inflamação e também para identificar outras causas para os sintomas. É a técnica preferida para o diagnóstico de esofagite. Com o uso de endoscópios pediátricos modernos, não há idade ou limite de peso para a aplicação desse exame em pediatria.
Como se trata o refluxo gastroesofágico?
Há diferentes métodos de tratamento disponíveis, a depender da idade e das manifestações. Muitas crianças vivem seu primeiro ano de vida com refluxo e não requerem nenhum tratamento, além de simples cuidados com a posição e técnicas de alimentação. Apenas poucos bebês permanecem com refluxo após os 2 anos de idade.
Os cuidados com a alimentação incluem o incentivo ao aleitamento materno, com orientação sobre a técnica adequada para a mamada e para os cuidados após a alimentação, como aguardar o bebê arrotar antes de deitá-lo.
As recomendações dietéticas devem ser ajustadas para cada caso. Para as crianças alimentadas com mamadeira, a orientação é para o uso de alimentação adequada à idade, evitando-se o leite de vaca integral no primeiro ano de vida. Para esses bebês, algumas fórmulas especializadas – denominadas de antirregurgitação (AR) – podem ser utilizadas. A introdução da alimentação complementar, com pastosos e sólidos, deve seguir as mesmas recomendações feitas a bebês que não apresentam essas manifestações, isto é, por volta dos 6 meses de idade. Em alguns casos, deve-se considerar a substituição do leite por fórmulas hipoalergênicas, quando há suspeita de que os sintomas sejam causados por alergia ao leite de vaca.
Posição para o sono
Muito se tem discutido a respeito da posição mais adequada para o sono dos bebês com refluxo. Alguns estudos científicos demonstraram que a melhor posição para dormir é a prona (barriga para baixo) com a cabeceira da cama levemente elevada. Entretanto, observou-se aumento na incidência de morte súbita dos lactentes. A partir de 1992, a Academia Americana de Pediatria passou a recomendar que lactentes normais não dormissem na posição prona.
O tratamento postural é de difícil aplicação na prática, pois o bebê desliza no berço. Qualquer posição é difícil de manter, principalmente nos lactentes maiores que geralmente se movimentam; e, portanto, a simples elevação leve (até 30°) da cabeceira pode ser recomendada.
Medicamentos
Há vários medicamentos que podem ser utilizados para o tratamento da doença do refluxo, incluindo inibidores de ácido e procinéticos (que agem acelerando o esvaziamento do estômago). Os remédios devem ser usados com critério, especialmente considerando-se a relação entre o benefício e os riscos/efeitos colaterais nas diferentes faixas etárias. Infelizmente, o que se observa atualmente é um abuso na utilização de medicamentos em bebês com irritabilidade e choro excessivo, nos quais a doença do refluxo não é uma causa comum para o aparecimento desses sintomas. Há vários estudos demonstrando que a supressão ácida não controla sintomas como irritabilidade, choro, agitação, alterações do sono e aparente desconforto, que são interpretados como sintomas de doença do refluxo gastroesofágico, e o uso dos medicamentos tem o mesmo efeito do placebo.
É importante enfatizar que enquanto a doença do refluxo em crianças maiores e adultos, quando estabelecida, tende a persistir, nos bebês a tendência é uma resolução espontânea, sem sequelas. Isso é válido tanto para bebês com refluxo fisiológico quanto para aqueles com refluxo patológico, desde que as complicações sejam prevenidas e identificadas precocemente. A regurgitação em lactentes, mesmo quando frequente, geralmente não é motivo para preocupação se o crescimento, o desenvolvimento e a saúde estiverem normais.
O exagero no tratamento da doença do refluxo gastroesofágico em lactentes não ocorre sem efeitos adversos potenciais. Aos lactentes com sintomas persistentes, recomenda-se a avaliação criteriosa e individualizada para identificar o paciente que requer encaminhamento ao especialista em gastroenterologia pediátrica, para análise da pertinência de investigação diagnóstica e necessidade de tratamento terapêutico farmacológico ou eventualmente cirúrgico.
Serviço de Gastroenterologia Pediátrica
O Serviço de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipeé o mais importante do Paraná e está entre os principais serviços de gastroenterologia pediátrica do país. A especialidade é dirigida ao estudo, à prevenção e ao tratamento clínico das doenças do aparelho digestório em crianças e adolescentes. O trato digestório inclui diversos órgãos, como boca, esôfago, estômago, vesícula biliar, pâncreas, fígado, intestino delgado e intestino grosso.
Confira, no vídeo a seguir, informações sobre o refluxo após a amamentação:
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