Atendimento pediátrico pelo SUS: por que o financiamento é tão desafiador?

A tabela que norteia os pagamentos aos hospitais foi elaborada na década de 1980; além de não sofrer as correções inflacionárias necessárias, ela se baseia numa medicina praticada há quatro décadas

No Brasil, cerca de 75% da população depende do Sistema Único de Saúde (SUS) para ter seu direito à saúde e à vida garantido. Para sete em cada dez crianças, é a única alternativa de acesso a tratamentos de saúde, constituindo-se numa política pública extremamente necessária para o Brasil. Sozinhos, os hospitais públicos não conseguem atender os mais de 150 milhões de brasileiros que dependem do SUS. E é aí que entram os hospitais filantrópicos, como o Pequeno Príncipe, maior hospital exclusivamente pediátrico do Brasil. Os mais de 1,8 mil hospitais filantrópicos que atuam no país realizam 70% dos atendimentos de alta complexidade feitos pelo SUS e 51% da média complexidade. Juntos, disponibilizam 169 mil leitos hospitalares e 26 mil leitos de UTI.

Apesar da indiscutível relevância para o setor da saúde, os filantrópicos enfrentam grandes problemas financeiros, cuja raiz está no financiamento. A responsabilidade do financiamento é tripartite, ou seja, das três esferas de governo: federal, estadual e municipal; e os pagamentos são feitos por serviço prestado. Cada hospital tem uma meta a cumprir, estabelecida em contrato com o gestor local.

O grande desafio está na tabela adotada para remunerar os serviços prestados. De 1994 para cá, essa tabela teve um reajuste médio de 94%, enquanto o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) foi reajustado em 636%, segundo a Confederação das Santas Casas, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB).

Tabela do SUS
Para traduzir o que os números acima significam, apresentamos a seguir alguns valores que constam na tabela do SUS. Por uma consulta com um médico especializado – como oncologista, cardiologista, neurologista, por exemplo –, a tabela do SUS prevê um pagamento de R$ 10. Por uma consulta em Pronto-Atendimento, R$ 11.

A tabela praticada para exames também é desafiadora: por uma tomografia de crânio, o SUS paga R$ 94. Por um eletrocardiograma, apenas R$ 5,15. Um hemograma completo remunera os hospitais em R$ 4,11.

Os procedimentos cirúrgicos também têm uma remuneração deficitária. Por uma cirurgia de apendicite, por exemplo, a tabela prevê o pagamento de R$ 242,97 ao hospital e R$ 178,43 de honorários médicos, totalizando R$ 421,40. Já para um implante de marca-passo, procedimento complexo, a instituição recebe R$ 305,20, enquanto o profissional recebe R$ 669,59.

Pagamento por pacote
Além da tabela de preços desatualizada, o modelo de pagamento adotado remunera os hospitais por procedimento (por diagnóstico), independentemente de como se dá a evolução do paciente. “O modelo de pagamento por procedimento está baseado em um custo médico histórico, ou seja, é pago um valor médio para o mesmo diagnóstico, mesmo com evolução diferente. A questão é que a média histórica foi construída na década de 1980, baseada na medicina praticada naquela época. Além disso, não houve a correção dos valores de acordo com a inflação”, explica o diretor-técnico do Hospital Pequeno Príncipe, Donizetti Dimer Giamberardino Filho. “O tempo passou e não houve correção monetária. E os tratamentos atuais referentes aos códigos da tabela SUS não foram atualizados. A valoração é de uma medicina aplicada na década de 1980, quando deveria ser na década de 2020”, enfatiza.

O tratamento da epilepsia demonstra bem esse descompasso. A tabela do SUS prevê um pagamento de cerca de R$ 2 mil por internamento por crise convulsiva. Porém, quando essa tabela foi elaborada, não existia exame de ressonância magnética nem exames genéticos para investigar as causas da doença. Ou seja, ainda que os valores da tabela tivessem recebido correção inflacionária adequada, não estariam de acordo com a medicina praticada nos dias de hoje, que incorporou novas tecnologias, encarecendo sua prática.

Um caso real
A história da pequena C.B., que hoje está com 9 meses, ilustra bem o quão desafiador é o atendimento pelo SUS do ponto de vista financeiro. A menina nasceu saudável, mas com 8 dias de vida teve uma torção e uma perfuração do intestino. Tratada em outro hospital de Curitiba, passou por quatro cirurgias e perdeu 90% do seu intestino, ficando com apenas 30 centímetros. Após dois meses internada, ela foi transferida para o Pequeno Príncipe, pois apresentava grave desnutrição. 

No Pequeno Príncipe, ela passou a ser acompanhada pelo Serviço de Suporte Nutricional, que iniciou a oferta de alimentação parenteral (pela veia). Foram cinco meses de internamento, período em que ela necessitou de acompanhamento com pediatra, gastroenterologista, neurologista, cirurgiões pediátricos, radiologistas intervencionistas, fisioterapeuta e fonoaudióloga.

“Por todo esse tratamento que inclui diárias de quase cinco meses de internação, acompanhamento médico de várias especialidades, equipe multiprofissional, exames, medicamentos, materiais como cateteres, procedimentos como radiologia intervencionista, o Pequeno Príncipe recebeu do SUS R$ 16,2 mil”, revela o diretor-administrativo-financeiro do Hospital, André Teixeira. Só a alimentação que ela recebe pela veia custa cerca de R$ 275 por dia – o que, em cinco meses, já somaria algo como R$ 41 mil. O SUS repassa R$ 45 por dia pela alimentação, em torno de R$ 6,7 mil.

“Atender os pacientes pelo SUS representa um desafio financeiro enorme, mas diariamente optamos por enfrentar esse desafio porque acreditamos que todas as crianças, independentemente da sua condição financeira, têm direito à vida e à saúde, assim como a pequena C.B. teve essa oportunidade”, ressalta o diretor-corporativo do Complexo Pequeno Príncipe, José Álvaro da Silva Carneiro.

Custos agregados
Além das questões relacionadas à tabela de preços, o atendimento pediátrico pelo SUS apresenta algumas características que representam custos adicionais – mas fundamentais – à sua prática.

A criança tem o direito de ficar internada com um acompanhante ao seu lado. Esse acompanhante, no entanto, precisa alimentar-se enquanto está no Hospital. Precisa também fazer sua higiene, necessita de um ambiente adequado para descansar, muitas vezes requer acompanhamento psicológico. Todas essas necessidades não são incluídas na remuneração oferecida pelo SUS.

Outro exemplo é a manipulação das doses dos medicamentos. Enquanto em um hospital para adultos se pode, por exemplo, oferecer um medicamento na dosagem em que ele é disponibilizado pela indústria farmacêutica, para as crianças normalmente é preciso fracioná-lo, adequando a dose ao peso do paciente. O Pequeno Príncipe atende crianças com pesos que variam de menos de 1kg a mais de 100kg. A dose de cada medicamento é calculada e preparada na farmácia para cada criança, garantindo assim a segurança na oferta. Por mês, são preparadas em média 800 mil doses de medicamentos, exigindo que a farmácia do Hospital tenha um número maior de colaboradores, ou seja, mais custo para a instituição.

“Há ainda outros exemplos de serviços agregados que ofertamos para nossos pacientes, mesmo que isso represente um aumento nos nossos custos, pois acreditamos que são práticas que humanizam o atendimento e se refletem diretamente nos indicadores de assistência. Para fazer frente a essas despesas, contamos com o imprescindível apoio da sociedade em inúmeros projetos”, observa a diretora-executiva do Hospital, Ety Cristina Forte Carneiro.

“A compaixão está no nosso DNA, e esse desafio nos motiva a acordar todos os dias e empregar toda nossa energia para fazer uma gestão cada vez mais eficiente, engajar cada vez mais a sociedade na nossa causa, e oportunizar chances de vida a um número cada vez maior de crianças”, completa. 

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